GLOBALIZAÇÃO: O FATOR BESTIAL
 
 
José Maria G. de Almeida Jr.
 
"Olhe para o céu! " E no que o discípulo aquiesceu à suave ordem, o mestre acrescentou, logo depois: "E agora olhe à sua volta, e em seguida para dentro de você mesmo!" Passado algum tempo, perguntou: "E então? "
Senti inteireza," respondeu afavelmente o discípulo; "uma sensação de pertencer..., de ser parte integrante, interdependente do todo, co-responsável por todos, por tudo... "
"Basta!"- interrompeu abruptamente o mestre, e prosseguiu serenamente:
"Você  acaba de viver as experiências fundamentais - aquelas que iluminam o único caminho que permite escapar ao dilúvio, à morte."
 - Adaptação inspirada na EPOPÉIA do Gilgamesh, Babilônia, ca sec. XX a.C.
 
"Foi divertido! Digitar aquelas poucas teclas e ver, em segundos, nas telas dos nossos computadores, aquele capital de bilhões de dólares indo de um país para outro flutuando... "
"Mas,... diante de um tal ataque financeiro, especulativo, como ficam..."
"Minha jovem," interrompeu sofregamente o representante do grupo megainvestidor internacional, enquanto pegava a estudante de pós-graduação pelo braço, e dirigiu-se a todos da animada roda de conversa: "Há uma lógica na política, na economia.  Estávamos apenas seguindo as regras do Jogo internacional. Apenas. E foi divertido. "
Com mais um 'flûte' de champanha, o assunto prosseguiu noutra direção.
- Diálogo recolhido durante um coquetel, na abertura de um fórum internacional sobre globalização, Pais, séc. XX d.C.

Ao término de um seminário internacional sobre globalização, realizado em New York, em 1993, coube ao principal conferencista do dia resumir o tema do encontro, o que foi feito cartesiana e pedagogicamente.

"Há, portanto, dois modelos de globalização: o da plenamente inclusiva e o da não plenamente inclusiva. E a cada um desses modelos corresponde, ponto a ponto, um paradigma de percepção, ação e reação." (1)

E o ilustre professor da London School of Economics prosseguiu explicando que a globalização plenamente inclusiva é o ato ou efeito de perceber, agir e reagir de modo a integrar - com interdependência cooperativa, e respeito a todas as formas de pluralismo - as nações do mundo num todo global.

E para quem esperava uma definição oposta ou pelo menos muito contrastante para o outro modelo veio a surpresa: a globalização não plenamente inclusiva foi definida com diferença num termo apenas - a expressão interdependência cooperativa foi substituída por interdependência competitiva.

Audiovisuais impecáveis encarregaram-se da justaposição dos dois modelos.  Dentre os muitos termos e expressões terminológicas usados para contrastá-los, os mais freqüentes foram forças políticas e forças econômicas.

Ao finalizar seu brilhante resumo, o conferencista admitiu solenemente que, na prática, ou, como disse, "no espírito de uma política econômica saudável', (2) o mundo não pode seguir o modelo idealizado da globalização plenamente inclusiva (interdependência cooperativa).

Ora, "Por quê?" A impertinente pergunta surgiu inevitavelmente durante o debate, da parte de uma professora polonesa, da Columbia University, especialista em ética do desenvolvimento. (3)

Porque... forças políticas..., forças econômicas..., questões de mercado..., fluxo de capitais..., margens de lucro... Enfim, as justificativas de sempre foram apresentadas por todos os debatedores, razões do tipo não sejam ingênuos, pois o bolo não dá para todos, e a política é a arte do possível.

De fato, o bolo não tem dado mesmo para todos; e a política tem sido meramente a arte do possível. Essa tem sido a lógica convencional do pensamento politico-econômico do capitalismo selvagem, sobretudo na globalização ora em curso na maior parte do mundo, que segue o modelo da interdependência competitiva. Dai os que comem e os que não comem, os escolhidos e os excluídos. Afinal, por quê?

As razões subjacentes a essa lógica são zoológicas. O homem é o único animal que pode exibir ad nauseam o comportamento de maximização competitiva a qualquer preço, até mesmo ao preço da sua própria auto-destruição, embora seja plenamente capaz da maximização cooperativa, padrão comportamental que permeia o diálogo, a cooperação e o equilíbrio entre custo/beneficio de qualquer natureza - seja este, por exemplo, político, econômico, social, cultural ou ambiental.

Essa singularidade comportamental humana - o fator bestial - preside a filosofia do mais ou maior é sempre melhor - inerente ao capitalismo, particularmente na sua versão de alta competitividade que caracteriza a economia globalizada do nosso tempo. Se se tem    ha de terra, por que não ter 10, 100, 1.000, 10.000, 100.000, se possível 1.000.000 ha, e assim por diante, ainda que não seja possível pisar, fisicamente, em cada metro quadrado desse chão, ao longo de uma vida de 100 anos, e, assim, tampouco possuir, de fato, tamanha extensão de terra ? (O território, para um animal territorial não humano, tem sempre uma área compatível com os recursos e as possibilidades do animal para otimizar a vigilância, o cuidado e o uso do seu território).

O fator bestial tem caráter entrópico - semeia o caos. Não é por acaso, portanto, que a TREND LETTER, que recebo quinzenalmente, via INTINIERNETERNET, e que se dedica a proclamar os feitos e tendências da globalização de modelo competitivo, deixa claramente transparecer que o ambiente, nos seus aspectos físicos, biológicos e culturais, bem como setores vitais da sociedade, sobretudo educação, saúde, trabalho e previdência, não apenas se desorganizam, mas sofrem grandes perdas com os ataques de especulação financeira (capital pelo capital, lucro pelo lucro) que com freqüência ocorrem na economia de mercado internacional. (4)

Contudo, temos que reconhecer que o modelo de globalização competitiva tem uma lógica econômica envolvente, e incríveis atrativos financeiros e tecnológicos. Somos facilmente seduzidos pelas suas maravilhosas conquistas, que dispensam exemplos, pois fazem parte do nosso cotidiano, tanto em ambientes urbanos como rurais.  E o que falar, então, de suas fantásticas potencialidades futuras? Não é de admirar, portanto, o quanto é fácil admitir não ser realista viver fora de uma economia de mercado ^ livre, aberta, num mundo globalizado e altamente competitivo.

Mas não nos pode escapar à percepção o quanto o modelo de globalização competitiva é perverso, pois que vem aumentando, e muito, o fosso entre ricos e pobres, exercendo pressões sociais e ambientais que vão muito além das capacidades de suporte das sociedades e do planeta como um todo. Novamente, os exemplos são dispensáveis: estão na mídia nossa de cada dia.

O assunto é complexo e polêmico. Mas o que fazer? Ou não fazer? Que ética poderá dar suporte ao quadro de degradação ambiental e miséria social que temos diante de nós, e mais ainda aos cenários dantescos que podem ser traçados para um futuro próximo? (O homem extingue, direta ou indiretamente, 72 espécies de seres vivos por dia, 3 por hora; e morrem de fome, no planeta, 76 pessoas por minuto - 50% delas, crianças.) (5).

A solução, certamente, não mais poderá passar por regimes políticos totalitários e sistemas econômicos exauridos, sejam de esquerda ou de direita. O fato, contudo, é que vivemos uma tragédia: o bote é um só, e estamos todos dentro dele - escolhidos e excluídos, duas subespécies culturais de homens e mulheres, ao sabor do dilúvio. Por onde passa a solução? Ou não haverá solução?

O fator bestial é mais cultural do que genético. Felizmente. Por isso, é possível ensinar e aprender o comportamento de maximização cooperativa, e até mesmo a solidariedade e o altruísmo. As forças políticas e econômicas, portanto, têm que ter uma profunda relação com a educação, a cultura, e a ética. Mais do que isso: têm que ter um compromisso moral com a condição humana e o estado do planeta.

Assim, há que se redefinir riqueza, tanto a natural como a artificial, propiciando seu uso  e distribuição com paz, eqüidade, justiça e equilíbrio ambiental. A consciência ecológica - a percepção de um planeta singular para todos (fenômeno dos mais fascinantes do mundo globalizado dos últimos 40 anos) - é o primeiro passo para isso.  Afinal, é a essa consciência que devemos a idéia de desenvolvimento sustentável, bastante discutida em escala mundial, mas ainda modestamente operacionalizada em escala local - um solene compromisso moral com a sobrevivência equilibrada e condigna da Terra, que leva em conta as possibilidades, necessidades, interesses e limitações das gerações humanas de hoje e do futuro. (6).

A solução, portanto, passa pela resistência pacifica à aura do modelo de globalização competitiva, e pela adoção do modelo cooperativo, pela via da conscientização individual e comunitária. Uma utopia? Romantismo ingênuo ? Sim, talvez. Mas não para quem se depara com um planeta que, além de poluído em extremo, abriga um terço da humanidade em estado de pobreza absoluta e miséria. (Estou diante de fotografias de Sebastião Salgado. Não são imagens de Auschwitz, de cerca de 50 anos atrás; são documentos visuais dos nossos dias - de Angola, de Ruanda, do Zaire, do Brasil - que nos convidam à reflexão e a um posicionamento crítico diante das desigualdades e injustiças sociais, que nascem da arrogância da competição sem limites de uns poucos "escolhidos"- danosa ao bem comum do ambiente, e perversa à condição humana da multidão de excluídos.) (7).

Quando em visita ao Museu do Holocausto, em Washington, D.C., em 1993, lembrei-me de Jacob Bronowski: "Estamos todos com medo - de nossa presunção, de nosso futuro, do mundo." (8). A tragédia imposta pelo sofrimento, ainda que de um único ser. pertence a todos nós. Temos que tocar todos os seres em suas circunstancias. Ou por eles seremos tocados. A co-responsabilidade é um ato de interdependência cooperativa inescapável.
 

Notas e referências bibliográficas

l. Notas pessoais.

2. IDEM.

3. IDEM.

4. TREND LETTER é publicada quinzenalmente pela The Global Network, Washington, D.C.

5. Myers, N. GAIA: AN ATLAS OF PLANET MANAGEMENT. Anchor Books, New York, 1993.

6. Ver documentos que resultaram da UNCED/RI0-92, in: J.M. G. de Almeida Jr. "Desenvolvimento ecologicamente auto-sustentável: conceitos, princípios e implicações". Humanidades 10(4):28s99,1994.

7. Salgado, S. TRABALHADORES. Companhis Das Letras, São Paulo, 1997.
    Salgado, S. TERRA. Companhia Das Letras, São Paulo, 1997.  Ver também fotografias de S. Salgado in: "Dossiê Direitos Humanos", USP /Estudos Avançados 30, 1997.

8. Bronowski, J. THE ASCENT OF MAN. Little, Brown & Co., Boston, 1973, p. 438. (Há tradução pata o português).