POLÍTICA CULTURAL EM TEMPOS DE GLOBALIZAÇÃO
 
Ricardo Oriá
 

Grande parte dos estudos e análises sobre o processo de globalização têm sido feitos sob a ótica da economia. Esquece-se, portanto, uma dimensão importante desse processo no tocante aos aspectos sociais e culturais dele advindos e seus reflexos na vida das pessoas e na redefinição da identidade dos países, sobretudo com o aparecimento de novos suportes de informação disponíveis, a exemplo da Internet, TVs a cabo, multimídia, entre outros.

O fenômeno da globalização traz consigo, em seu discurso, a tentativa de se forjar um mundo homogêneo e unívoco. Nesse estágio do capitalismo que estamos vivenciando, a globalização pretende tornar todos iguais e homogêneos, uma "aldeia global"   que não respeita as singularidades e especificidades locais e regionais e que não reconhece que a grande riqueza da Humanidade é a sua diversidade étnico-cultural.

Contrapondo-se a esse discurso falacioso e enganador, consideramos que, neste mundo de economia globalizada, pretensamente "sem barreiras", a cultura  constitui, ainda, o elemento mais importante de afirmação da identidade nacional. É ela, em última instância, o aspecto fundante que diferencia um país de outro.

Este texto pretende, pois, suscitar uma discussão sobre o mundo da cultura e de como se pensar uma política cultural em tempos de globalização econômica. Para tanto, faremos uma breve digressão sobre a historicidade do conceito de cultura e a nec essidade de delinearmos uma política cultural para o País ensejadora do exercício da cidadania a todos os brasileiros.

Cultura além das belas-artes e da erudição

Etimologicamente a palavra "cultura" deriva de "colere" que, por sua vez, significa cultivar, habitar, criar e preservar. Nas sociedades da Antiguidade Oriental, o termo associava-se ao cuidado da terra, referindo-se ao manejo que o homem tinha da natureza.

O filósofo grego Aristóteles, na Antiguidade Clássica, já definia cultura como aquilo que não é natural, que não pertence ao mundo da natureza ou não decorre de leis físicas e biológicas. Posteriormente, o Iluminismo, movimento intelectual do século XVIII, colocou a razão como tema central de sua teoria e, a partir de então, o homem passou a ser visto como animal racional. Já no século XX, "emerge o tema da cultura e o homem passa a perceber-se como um animal cultural."

Atualmente, os antropólogos e cientistas sociais consideram que a cultura refere-se ao modo de vida de um povo, em toda a sua extensão e complexidade. Assim, o conceito de cultura procura designar uma estrutura social no campo das idéias, dos símbolos, das crenças, dos costumes, dos valores, artes, linguagem, moral, direito, leis, etc., e que se traduz nas formas de pensar, sentir e agir de uma dada sociedade.

No entanto, ainda hoje, a palavra "cultura" tem sido empregada cotidianamente como sinônimo de erudição ou para designar o mero acúmulo de conhecimentos. Atualmente, graças à contribuição da Antropologia, o moderno conceito de cultura não está mais restrito ao campo das belas-artes, da filosofia e da erudição, tão ao sabor das elites letradas deste país. Devemos compreender  "cultura" como o conjunto de manifestações espontâneas, que se moldam no cotidiano das relações sociais de uma determinada coletividade que, uma vez incorporadas ao seu modus vivendi, a caracteriza e a distingue das demais.

A "Conferência Mundial sobre Políticas Culturais", realizada no México em 1982, declarou, acertadamente, que "a cultura hoje pode ser considerada o conjunto dos traços distintivos, espirituais e materiais, intelectuais e afetivos, que caracterizam a sociedade ou um grupo social. Além das artes e das letras, engloba modos de vida, os direitos fundamentais do ser humano, os sistemas de valores, as tradições e as crenças."

Considerando a cultura como todo um modo de vida na acepção antropológica mais ampla, podemos tirar uma primeira e importante conclusão, qual seja, a de que  a cultura deve ser pensada como direito, criação e fio condutor que perpassa os diversos aspectos da vida humana e todas as áreas e ações da sociedade e dos governos 2.. Assim, um outro conceito de cultura ganha significado, onde a mesma deixa de ser encarada como concessão do Poder Público, como adereço, algo diletante, "perfumaria" e privilégio de poucos. A Cultura hoje deve ser vista sob a ótica da Cidadania.

Entender a cultura como direito de cidadania implica reconhecer que somos sujeitos históricos e culturais, produtores de cultura e, como tal, temos direito de criar, inventar, produzir, bem como de ter acesso aos bens culturais de nossa sociedade e à memória coletiva, esteio de nossa identidade cultural.

Na verdade, a cultura não se reduz ao mundo dos eventos e do efêmero, ao campo das artes e da erudição e às leis do mercado, como hoje apregoam os neoliberais de plantão. O mundo da cultura diz respeito à totalidade das experiências sociais e, neste sentido, interessa a todos como direito de cidadania. A filósofa e ex-Secretária de Cultura do Município de São Paulo, Marilena Chauí, tem toda a razão ao afirmar que: "A cultura não se reduz ao supérfluo, à sobremesa, ao mundo oficial, mas se realiza como um direito de todos os brasileiros, a partir do qual eles se diferenciam, entram em conflito, recusam ou aceitam modelos, criam alternativas, tornam-se sujeitos da história: autores de sua própria memória."

Consideramos, pois, que Cultura é direito de cidadania, devendo, portanto, ser assegurada a todos os brasileiros, indistintamente. Desde a "Declaração Universal dos Direitos do Homem", da Organização das Nações Unidas (ONU), de 1948, os direitos culturais foram erigidos à categoria de direitos fundamentais da pessoa humana e, como direito, podem e devem ser exercidos e exigidos quando necessário: "Toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do processo científico e de seus benefícios." (Artigo XXVII da Declaração Universal dos Direitos do Homem).

Mas o que vêm  a ser Direitos Culturais?  Ou mais ainda, o que significa Cidadania Cultural?

Por uma Política de Cidadania Cultural

Na moderna teoria democrática, a noção de Cidadania está fundamentada na definição legal de direitos e obrigações que a constituem e compreende os direitos e deveres civis, políticos e sociais  . No âmbito dos chamados direitos sociais, encontram-se os culturais. Os direitos culturais são aqueles direitos que o indivíduo tem em relação à cultura da sociedade da qual faz parte, que vão desde o direito à produção cultural, passando pelo direito de acesso à cultura até o direito à memória histórica. Esse conjunto de direitos integra a concepção de Cidadania Cultural. Vejamos, pois, cada um de per si:

O direito de produção cultural parte do pressuposto de que todos os homens produzem cultura. Todos somos, direta ou indiretamente, produtores de cultura. É o direito que todo cidadão tem de exprimir sua criatividade ao produzir cultura.

O direito de acesso ou fruição à cultura pressupõe a garantia de que, além de produzir cultura, todo indivíduo deve ter acesso aos bens culturais produzidos por essa mesma sociedade.
Já o direito à memória histórica, como parte dessa concepção de  Cidadania Cultural, indica que todos os homens devem ter acesso aos bens materiais e imateriais que representem o seu passado, a sua tradição, a sua História. O direito à memória  . encontra-se consubstanciado nos bens culturais pertencentes ao Patrimônio Histórico da sociedade.

Além desses direitos anteriormente explicitados, podemos acrescentar a esse princípio da Cidadania Cultural o direito à informação como condição básica para o seu exercício e o direito à participação nas decisões públicas sobre a cultura, por meio de conselhos e fóruns deliberativos, onde o cidadão possa, através de seus representantes, interferir nos rumos da política cultural a ser adotada, distanciada dos padrões do clientelismo e da tutela que, geralmente, norteiam as políticas públicas no País ..

Pioneiramente, na atual Constituição Brasileira, o legislador constituinte teve a sensibilidade política de enquadrar no rol dos direitos fundamentais os chamados direitos culturais e de exigir que o Estado garanta a todos os brasileiros o exercício dos mesmos. Isto é evidente a partir da leitura do art. 215, caput, da Carta Política  de 1988: "O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais."

No entanto, a dicotomia entre o "Brasil legal" e o "Brasil real" está também presente no campo da cultura. Embora seja considerado um avanço legal o fato do reconhecimento constitucional aos direitos culturais, ainda estamos muito aquém da efetiva realização do mandamento  constitucional. Muito ainda precisa ser feito para que, de fato, se democratize o acesso à cultura e aos bens culturais a todos. Numa sociedade profundamente marcada por conflitos, contradições e desigualdades sociais, a cultura ainda se constitui um privilégio.

Por sua vez, a falta de uma política cultural consistente e eficaz por parte do Poder Público, aliado aos parcos recursos financeiros destinados ao setor, não tem contribuído para uma real democratização de nossa cultura.

No rol das políticas governamentais, a cultura não tem sido prioridade, nem tampouco nos discursos e ações programáticas dos diferentes partidos políticos. Até mesmo partidos políticos ditos "progressistas" têm uma compreensão equivocada e distorcida da problemática cultural no País. Acreditam que a população brasileira tem outras necessidades mais prementes (saúde, educação, transporte, etc) que precisam ser urgentemente atendidas em detrimento da cultura. Esquecem, no entanto,  o papel transformador desta no desenvolvimento sócio-econômico do País e como instrumento possibilitador da melhoria da qualidade de vida da população. Como bem acentua a socióloga argentina Beatriz Sarlo  , o tema da arte e da cultura ainda se encontra restrito aos especialistas e ao debate intelectual de acadêmicos e, praticamente, ausente da agenda política dos partidos e da sociedade em geral.

Recentemente, a Organização das Nações Unidas (ONU) publicou um estudo mostrando que uma parte das situações de fome no mundo era em decorrência da falta de alimentos ao alcance dos indivíduos, mas uma outra parte- e uma parte bastante considerável- estava associada à falta de discernimento cultural, de tradição cultural dos hábitos alimentares. Neste sentido, para se contrapor ao discurso falacioso de que é preciso primeiro "matar a fome" dos brasileiros, essa pesquisa atesta que "cultura também enche barriga".

Em meio ao processo de globalização que estamos presenciando, colocamos algumas questões norteadoras para a definição de uma política para a área da cultura em nosso País, que possibilite a afirmação de nossa identidade e cidadania.

Pensamos, pois, que uma política cultural para um Brasil que se pretende moderno e democrático há de pautar-se  pela idéia motriz de que a cultura, que é produzida coletivamente, deve constituir-se num   direito coletivo, também, a ser apropriado por todos os cidadãos indistintamente. Portanto, impõe-se  que se criem meios e mecanismos eficazes para que o cidadão comum tenha direito à cultura, tenha direito à memória coletiva e tenha condições de se apropriar dos bens culturais que, normalmente, vêm sendo monopólio dos setores dominantes da sociedade. Não se trata, tão-somente, de valorizar as manifestações populares, o folclore, o artesanato, entre outras formas de cultura popular. Tudo isso é importante, mas consideramos que o caminho a ser trilhado é o de democratizar o acesso à cultura a todos os segmentos sociais. Só assim estaremos contribuindo para que os privilégios de classe numa sociedade capitalista como a nossa, marcada por profundas desigualdades e contradições,  sejam diminuídos e se democratize, de fato, o acesso aos bens culturais.

Hoje, no limiar de um novo século e milênio, temos a plena convicção de que, no Brasil, o alcance da plena cidadania passa necessariamente pelo exercício dos direitos culturais. Somente a partir do momento em que todos os brasileiros, como cidadãos e não meros consumidores, passarem a usufruir os bens culturais é que se inicia o processo de construção de uma nova identidade, assentada na diversidade regional e na pluralidade de nossas matrizes étnicas.