Globalização com Ética?

Diva Benevides Pinho (*)

A grande surpresa da Declaração das Responsabilidades Humanas, elaborada durante o Fórum Econômico Mundial-97 (Davos, Suíça, fevereiro/97), foi o tom de valorização da ética na articulação da atual fase da Sociedade em Rede (Network Society). Os participantes do Fórum, em sua maioria líderes políticos e empresariais do mundo todo, aceitaram o pressuposto de que a globalização é irreversível, mas a sedimentação de seus alicerces é um longo processo que requer padrões mínimos de consenso, responsabilidade e moralidade.

Nota-se que, juntamente com a tendência de se destacar o processo social da globalização, surgem preocupações a respeito de sua dimensão ideológica. De modo geral, até agora a ideologia da globalização parece refletir, principalmente, as preocupações com programas de qualidade e produtividade que reduzem custos e priorizam a avançada tecnologia poupadora de mão-de-obra, atribuem significativo peso às transnacionais, confiam no mercado e no Estado mínimo, e acreditam que os produtos globais são modernos, universais e superiores aos bens locais e nacionais.

Como processo, entretanto, sabe-se que a globalização é antiga e tornou-se mais visível com as grandes viagens ibéricas de abertura das rotas marítimas das Índias e das Américas. Na última década, porém, a globalização está acelerando e intensificando amplas mudanças econômicas, tecnológicas, sociais e culturais no mundo inteiro. Aliás, recentemente, até áreas tradicionalmente isoladas, como a China, o Vietnã e os antigos países socialistas europeus, estão sendo incorporadas à economia de mercado, mudando a configuração econômico-geográfica mundial.

Mas o principal questionamento da globalização é de ordem ética e está ligado à grande dúvida quanto à efetiva concretização de um grande mercado planetário de livre circulação de pessoas, bens, serviços, investimentos e fluxos financeiros ... E entre outras questões não menos importantes ressalta a das conseqüências negativas da supressão das barreiras regionais e nacionais que atuam como inibidoras da competição, mas, sem dúvida, a mantém em níveis toleráveis, sobretudo em países emergentes.

Muitas outras dúvidas são suscitadas pela amplitude do sentido de globalização. Vários críticos a identificam com "abertura e desregulação" que favorece os países industrialmente mais avançados, ou seja, é um jogo para poucos eleitos. Outros a confundem com a mundialização do capitalismo selvagem, da competição desenfreada de todos contra todos, em busca da maximização de ganhos. Ou a vêem como um simples meio da era informacional "uniformizar" os hábitos de consumo dos povos. Há quem insista na sua cumplicidade com o receituário neoliberal de ajuste da economia, mas não faltam também aqueles que notam uma espécie de afinidade natural entre a ideologia da globalização e o pensamento de certas vertentes do marxismo.

De fato, globalistas, marxistas e esquerdistas em geral parecem aceitar três semelhanças principais da globalização com fatos que marcaram a história social, política, econômica e cultural da Humanidade: o comando básico da sociedade planetária é dirigido por forças econômicas; a irreversibilidade da globalização lembra o determinismo ou fatalismo marxista a respeito do curso da história; e a obsolescência do Estado nacional torna-se crítica ante o rompimento das fronteiras nacionais pelo internacionalismo da globalização.

Na atual fase de transição a caminho da globalização, entretanto, ainda predomina a dinamização do comércio inter-regional, embora com pretensões de ampliação entre continentes. Para citar apenas as Américas, aí estão o Nafta, o Mercosul, as Uniões aduaneiras e os Acordos de livre-comércio, tais como o Grupo Andino, o Grupo de Três (México, Venezuela e Colômbia), o Caricom e o Grupo do Caribe mais a Venezuela, a CACM (América Central) e vários outros. Mais recentemente, está sendo esboçada a ALCA, Área de Livre Comércio das Américas.

Ou seja, embora as potências altamente industrializas procurem caminhar no sentido da globalização, entendida como a formação de uma comunidade econômica, social e cultural planetária, na realidade sua concretização ainda está muito distante. Dentre os principais entraves destacam-se, especialmente, as resistências econômicas, culturais, religiosas e étnicas, de caráter local e regional, bem como o temor de limitações da soberania dos Estados.

Em um plano geral, porém, parecem insuflar certo ânimo as conclusões de recente relatório da OIT (Organização Internacional do Trabalho), divulgado em dez/96. Com base na avaliação do mercado de trabalho de 154 países, a OIT indica que a expansão dos níveis de desemprego está muito mais relacionada à ausência de políticas de desenvolvimento do que à globalização da economia mundial. E afirma que, mesmo com a globalização, houve redução nos níveis de desemprego nos países que adotaram políticas de crescimento econômico.

Mas, por outro lado, a globalização continua sendo entendida como encolhimento do Estado. E neste ponto há sensíveis diferenças entre os países. Assim, por exemplo, enquanto países como os USA desenvolveram-se com fraca presença do Estado, o desenvolvimento do Brasil, nos últimos 40 anos, foi marcado por forte presença de um Estado autoritário, inchado e ineficiente. Daí decorrem vários problemas típicos da realidade brasileira.

E assim, à medida que a globalização vai se intensificando no Brasil, com a abertura econômica, a privatização e a desregulamentação, antigos problemas estruturais vêm à tona. No setor industrial, por exemplo, já se verifica a ruptura das antigas bases que sustentaram o capitalismo brasileiro desde os anos 50. As mais visíveis mudanças concentram-se sobretudo em três pontos principais: nas transformações da empresa "nacional/familiar", pressionada pela única alternativa - ou se modernizar ou desaparecer; na eliminação das reservas de mercado diante da competição que acompanha a abertura econômica; e nas privatizações, que sinalizam novas possibilidades de investimento, atraindo capitais estrangeiros e nacionais, até há pouco tempo limitados a giros especulativos. Mas não se deve minimizar também o que está sendo chamado de reintegração produtiva. Trata-se de uma forma de reajustamento de diferentes setores da indústria brasileira que, com a abertura econômica, passaram a importar maciçamente; então, juntamente com a chegada de novas empresas multinacionais, testaram o mercado e criaram uma rede de distribuidores que agora está novamente internalizando a produção no País, contribuindo para o adensamento das cadeias produtivas de setores que haviam se tornado grandes importadores.

Mas voltando à colocação inicial deste artigo, vemos que o Brasil está conseguindo superar as principais dificuldades da atual fase de transição a caminho da globalização econômica, mas têm sido grandes os sacrifícios, sobretudo da mão-de-obra, em decorrência da urgente necessidade de enxugamento de custos e busca da Qualidade e Produtividade para produzir bens e serviços de acordo com as exigências dos padrões internacionais. Além disto, persiste a dúvida: estaremos na rota da globalização com ética, segundo padrões mínimos de consenso, responsabilidade e moralidade? O fato desta questão haver sido colocada no Fórum Econômico Mundial-97 já indica uma preocupação geral com algo que deveria estar ocorrendo, mas que ainda parece um ideal distante...

(*) Professora da FEA-USP