Maria da Conceição Tavares
Folha de S. Paulo, 12/10/97
GLOBALIZAÇÃO E O ESTADO NACIONAL

Como país continental e relativamente industrializado, o Brasil teria condições de posicionar-se frente ao quadro da globalização financeira segundo critérios relativamente autônomos, como fizeram a Índia, a China e a primeira geração de Tigres Asiáticos. No entanto, o governo brasileiro optou por uma adesão pura e simples aos ditames do capital financeiro internacional com o objetivo de promover uma estabilização interna "milagrosa", cujas políticas monetária e cambial de sustentação estão-nos conduzindo a um impasse. Em consequência, somos hoje prisioneiros do câmbio e dos juros, e mais dependentes das oscilações dos mercados internacionais do que qualquer país menor de economia aberta – com o detalhe de que ao contrário dos países mais avançados de moeda historicamente conversível, não temos a mesma capacidade de resposta comercial ou financeira, ou a mesma influência nos foros internacionais.

 As ações "liberalizantes" do governo brasileiro estão centradas no objetivo de garantir o ingresso de capitais externos, para fechar as contas do balanço de pagamentos. A mais recente novidade seria a criação de uma "câmara de compensação" que garantiria os grandes bancos norte-americanos contra o risco de uma possível desvalorização cambial. Estas políticas de atração de capitais a qualquer custo pouco contribuem para o tão alardeado aumento da nossa competitividade. Atualmente, o perfil do investimento externo resume-se fundamentalmente às seguintes aplicações: porta-fólio (ações, títulos, etc.) que vêm em busca dos ganhos especulativos ou de arbitragem propiciados por uma taxa de juros muito acima da internacional; negócios bancados em grande parte pelo dinheiro público, como no caso dos enormes incentivos creditícios e fiscais concedidos às montadoras multinacionais; simples transferência da propriedade de patrimônio público financiada (pasme-se!) com a poupança forçada dos trabalhadores. A utilização do FAT pelo BNDES  é fantástica, já que o S (de Social) continua à míngua de recursos e o Banco financia "empreendimentos" que, em sua maioria, conduzem ao desemprego de trabalhadores e/ou à desnacionalização da economia.

 A execução de um verdadeiro "Projeto Nacional" que se contraponha a este estado de coisas, teria de promover uma regeneração do Estado e de suas relações com a sociedade – não apenas os setores dominantes mas também as classes médias e as populações excluídas. Isto nos leva a duas questões centrais: os espaços de autonomia para a formulação de políticas nacionais de desenvolvimento econômico e social sustentado e o papel do Estado dentro deste marco de globalização crescente.
Se percebemos a "globalização"  como um conjunto de políticas que traduzem a iniciativa de uma potência dominante, os EUA, que se propõe exercer um papel hegemônico em relação a seus parceiros e competidores, não há como evitar a conclusão de que o avanço da globalização vem implicando em uma perda relativa de autonomia da maioria dos estados nacionais. Isto não deve ser correlacionado, no entanto, com um suposto ocaso do Estado-Nação enquanto tal. Pelo contrário, toda a lógica do movimento de globalização tem, desde a sua origem, um caráter de concorrência predatória e de especulação patrimonialista, que só pode ser contida e regulada por novas formas de renovação e reforço dos mecanismos de intervenção dos Estados Nacionais. É precisamente de acordo com as possibilidades distintas de inserção externa não subordinada e capacidades política, econômica e social, peculiares a cada país, que os estados nacionais podem tentar, com maior ou menor sucesso, um novo tipo de intervenção pública que permita a restauração da economia e da seguridade social em defesa dos interesses de seus cidadãos.

Na medida em que a preponderância política e econômica de uma "ordem unipolar" se faz sempre acompanhar da difusão da cultura da nação dominante – hoje aguçada pela existência de meios globais de comunicação de massas – a preservação da cultura e identidade nacionais se torna indispensável. Este é um dos terrenos onde a necessidade de atuação dos estados modernos tem sido mais enfatizada em todos os foros nacionais e internacionais, através do resguardo, da independência e da democratização das suas agências de educação, de imprensa e de difusão cultural, que independentemente da ‘propriedade’ tem de ser consideradas de gestão pública.

 As reformas do Estado brasileiro não podem limitar-se, portanto, a estabelecer "normas jurídicas" de regulação, embora na atual situação de "ilegalidade" de tantas ações do Executivo e de "privatização" sem modelo, sem regras e muitas vezes sem ética, isso já fosse um avanço. Dado o desmantelamento a que foram conduzidos a maioria dos serviços públicos, a infra-estrutura básica e parte dos setores produtivos, nunca foi mais necessária do que agora a regeneração dos aparelhos de intervenção do Estado (a todos os níveis) e a escolha clara de um conjunto de objetivos de longo prazo que possam guiar as prioridades de investimento (sobretudo público e externo) e das políticas globais do país. Para isso, porém, a sociedade brasileira teria de ser capaz de romper o atual pacto de poder e sua dependência externa e refazer uma nova transição verdadeiramente democrática, sem "contra-reformas" conservadoras.

 É bom ter presente que, como demonstra o último relatório das Nações Unidas, o resultado dos programas de "reformas" e de privatização pelo mundo afora, não foi tornar o Estado enxuto e redirecionado para a área social. Na verdade (coisa que as agências multilaterais em geral ocultam) a transferência de ativos e empresas públicas para o controle privado foi propiciada pelo "mundo de negócios", no intuito de favorecer este ou aquele lobby empresarial, acentuando a concentração monopolista da riqueza, sobretudo a financeira. A correlação entre "estado enxuto", privatizações e aumento dos gastos sociais simplesmente não existe. Basta ver-se o exemplo da Inglaterra, que foi a pioneira das privatizações em larga escala, iniciadas há quinze anos, e que desde então reduziu o leque de benefícios de seu sistema previdenciário, piorou a distribuição de renda, dos serviços básicos de água, de energia e de educação para a população mais pobre. Apesar disso não reduziu o dispêndio global do setor público, por causa do aumento dos gastos com juros da dívida pública e as isenções fiscais aos grandes grupos privados (Lá, como cá, más fadas há!).

O Brasil, sendo um país com menos tradição jurídica e menor poder político de que a Inglaterra e sem possibilidades de ser "sócio estratégico" na manutenção da "ordem unipolar", está sujeito a maiores pressões políticas e diplomáticas da potência dominante e das agências multilaterais. Neste momento o nosso país encontra-se sob um verdadeiro cerco para se submeter totalmente às determinações "liberalizantes" do capital financeiro internacional e ceder aos desígnios da potência hegemônica. Nas três áreas de confronto – Mercosul vs. ALCA; liberalização completa dos fluxos de capital  (propostos na recente reunião do FMI); pressões para a assinatura de um acordo multilateral de investimentos (MAI) – a posição do Brasil, até agora, tem sido a de resistir a novas concessões que debilitem ainda mais nossa já difícil situação de dependência e vulnerabilidade externa.

Esperamos que essas resistências não venham a fraquejar, cedendo às duas tentações mais recentes, que se afiguram de alto custo e "modesta viabilidade": a garantia dos bancos norte-americanos de sustentarem a nossas reservas no caso de um ataque especulativo contra o Real e o reconhecimento cada vez mais duvidoso por parte dos EUA e de nossos parceiros latino-americanos de nosso status de "potência intermediária".

 
 
 
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