Discurso do Ministro de Estado das Relações Exteriores, Embaixador Luiz Felipe Lampreia, na abertura do seminário "Globalização: o que é e quais as suas implicações", promovido pela Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo.



São Paulo, 23 de maio de 1996


Eu queria em primeiro lugar agradecer aos organizadores do seminário a oportunidade que conferem ao Itamaraty, através do Chanceler, de participar deste exercício de reflexão sobre um fenômeno que se confunde com a própria história contemporânea e do qual o Brasil é necessariamente participante.

Eu vejo com satisfação que a montagem do seminário foi presidida por uma dupla orientação. Por um lado, a abrangência dos temas em que necessariamente deve dividir-se a análise do fenômeno da globalização em suas múltiplas implicações. E, por outro, a variedade de pontos de vista, de opiniões e de abordagens sobre cada um desses temas, no que deve ser um exercício democrático e aberto de discussão, de contribuição coletiva, mas também pluralista.

Em cada painel, essa preocupação está contemplada e traduz uma constatação inescapável: a de que a globalização é um processo tão complexo e com tantas ramificações, que o maior erro seria simplificá-la, transformando-a em um desses chavões analíticos que tudo generalizam e banalizam, criando a ilusão de dar conta da realidade.

Globalização é um conceito inovador em conteúdo, porque sintetiza uma realidade dinâmica, de múltiplas dimensões e graves implicações políticas, econômicas, sociais e culturais. É uma realidade à qual não se poderia fugir a não ser por uma hipotética e hoje inviável autarcização da sociedade. Mas é também uma realidade que pode ser explorada com as cautelas e a determinação necessárias para dela extrair benefícios, com pragmatismo e com sentido de realismo.

De uma forma ou de outra, todos nós lidamos diariamente com o fenômeno que será analisado pelos participantes deste seminário. Ao contrário de outros fenômenos históricos de repercussão mundial, como as grandes navegações, as revoluções e as próprias guerras chamadas mundiais, os reflexos da globalização, pela própria natureza do fenômeno, são imediatos e universais e afetam não apenas processos históricos nacionais ou regionais, mas a própria vida diária dos agentes econômicos e dos consumidores.

A qualidade, a quantidade e o ritmo da informação à nossa disposição; os investimentos produtivos que geram empregos, riqueza e bem-estar; o próprio nível de emprego; a formulação e a execução de políticas macroeconômicas e de políticas sociais; a revisão crítica das estruturas econômicas e jurídicas vigentes; tudo aquilo, enfim, que tem a ver com o bom desempenho de um país como nação soberana, economicamente eficiente e socialmente integrada e justa é afetado de alguma forma pela globalização nesta fase de consolidação do fenômeno.

Não há nada mais simbólico dessa fase do que as redes mundiais de informação por computador. Elas completam a sensação de que a distância e o tempo deixaram de ser fatores decisivos para a circulação de mercadorias, investimentos e informações e para a tomada de decisões em qualquer nível e âmbito em que se organizam as sociedades e os indivíduos.

O mundo da globalização está marcado por uma homogeneização crescente -- ainda que longe de completa -- das linhas fundamentais do comportamento político e econômico dos Estados. Essa homogeneização faz da democracia e da liberdade econômica forças básicas das relações internacionais, uma espécie de "grau zero" a partir do qual os países e regiões são analisados e avaliados do ponto de vista da estabilidade e confiabilidade das instituições e da atratividade e potencial das economias.

A unificação dos mercados e dos processos produtivos; o impacto dos avanços tecnológicos na área de comunicação; a velocidade dos fluxos de capitais e tecnologias; a importância da competitividade no sentido mais amplo como condição para uma inserção internacional benéfica dos países; o surgimento ou consolidação de novos e importantes atores mundiais do ponto de vista econômico e comercial; a prevalência da competição econômica e tecnológica sobre as disputas políticas, ideológicas e mesmo territoriais entre os Estados -- todos esses são apenas alguns exemplos de dimensões importantes do processo da globalização.

Essas várias dimensões nos afetam diretamente como nação soberana e provocam naturalmente o interesse ativo do Governo e da sociedade brasileiros. E, porque a globalização incide diretamente sobre a concepção e a execução da política externa brasileira, interessa muito especialmente ao Itamaraty.

Não se trata de um interesse teórico ou da fascinação de um modismo. É uma preocupação que se manifesta com o máximo de objetividade e sem preconceitos ou passadismos.

Ela visa a que a nossa política externa leve em conta a globalização como realidade internacional objetiva, exigindo definições e redefinições de políticas, um perfil mais ativo no cenário mundial e regional e uma clara consciência dos nossos objetivos, trunfos e limitações.

Visa também a que a diplomacia seja uma resposta adequada e eficiente à inegável carga de oportunidades, desafios e riscos que o processo comporta para uma nação com as características do Brasil.

Afinal, somos um país de dimensões continentais e grande população, com uma economia dinâmica e em crescimento, com presença em praticamente todo o mundo e com um comércio exterior equilibrado. Somos também um país com imperativos inadiáveis na área dos indicadores sociais e das reformas que consolidem a estabilização, a abertura competitiva ao exterior e a retomada do crescimento e que fortaleçam o Estado para exercer suas funções básicas e vitais em uma sociedade em desenvolvimento.

E estamos em uma fase decisiva de transição para uma economia estável, competitiva, mais aberta e integrada à economia regional e mundial, e em que a nossa participação no comércio internacional de bens e serviços e no acesso aos fluxos de investimentos produtivos e tecnologias ainda tem vastos espaços para ampliar-se e muitos desafios.

Compreender a globalização implica necessariamente ter a mente aberta e desinibida de preconceitos ou de formulações puramente ideológicas, que na verdade pouco ajudam a compreender a realidade e nada acrescentam ao instrumental adequado para lidar com essa realidade segundo o ângulo de visão em que estejamos.

Diversos elementos próprios do processo de globalização podem transformar-se em oportunidades ou riscos para um país como o Brasil segundo a abordagem que lhes seja dada. O país está desafiado -- criativamente desafiado -- pelo fenômeno.

Tomemos, por exemplo, a democracia, hoje sólida e atuante, que estamos consolidando no país e em toda a nossa região. Ela recebe sem dúvida um influxo positivo da globalização, na medida em que se traduz em estabilidade política e social e em confiabilidade e legitimidade do processo decisório. São características fundamentais, condições mesmo, para participar com ganhos do jogo de uma economia globalizada.

A abertura competitiva ao exterior é outra área em que os desafios da globalização podem induzir transformações construtivas no Brasil. Sermos mais competitivos, através da melhoria da produtividade da economia e dos padrões de qualidade e eficiência dos nossos bens e serviços e da diminuição dos custos de produção só pode ser benéfico em todos os sentidos.

Ganha o consumidor brasileiro, essa personagem fundamental da economia em um país democrático, mas que foi virtualmente esquecido no processo de substituição de importações em nome de outros objetivos. Ele passa a ser um ponto de referência fundamental em um mercado disputado composto por 160 milhões de consumidores potenciais. Suas decisões como agente econômico individual passam a ganhar uma extraordinária importância porque ele é objeto de uma atenta competição. Ganha como cidadão ao fortalecer-se como consumidor.

Ganham os agentes econômicos brasileiros e o nosso mercado de trabalho, na medida em que competitividade se traduz em acesso a mercados com o conseqüente aumento de exportações de bens e serviços e em maior interesse em investimentos e transferência de tecnologias indispensáveis ao desenvolvimento.

E, em geral, ganha a sociedade brasileira como um todo, porque tem melhores condições de acesso à informação e ao conhecimento graças à revolução da informática e das comunicações. Com isso, pode munir-se de mais e melhores instrumentos para o seu desenvolvimento político, cultural e social.

Não quero com isso desconhecer que há riscos em aceitar passivamente as pressões oriundas de uma economia globalizada e intensamente competitiva. Ela relativiza a capacidade dos Estados de atuar soberanamente e torna absolutamente imperativo estar preparado para enfrentar uma forte concorrência externa que se desdobra em vários campos: na conquista do nosso próprio mercado, na conquista de terceiros mercados, na obtenção de investimentos produtivos, no acesso a tecnologias.

Há uma tendência a meu ver simplista de culpar genericamente a globalização pelos males que os países possam estar enfrentando individualmente ou setorialmente. Na verdade, devemos partir do pressuposto de que a globalização é a própria história contemporânea em desenvolvimento, e de que seria pueril insurgir-se quixotescamente contra a história em vez de procurar explorá-la a nosso favor.

Objetivamente, a maioria dos problemas genericamente atribuídos à globalização resultam de deficiências tópicas que apenas são potencializadas pelas novas condições de competição e convivência internacional.

Essas deficiências devem ser corrigidas por outros meios que não o recurso a políticas que já não têm mais vigência ou plausibilidade econômica ou política, como a autarcização, a substituição de importações, o dirigismo estatista, as políticas temerárias de déficits fiscais, as políticas de competitividade baseadas em subvalorização cambial da moeda e assim por diante.

Ninguém duvida de que o desemprego, nas formas perversas com que se manifesta hoje tanto nas economias desenvolvidas como nas economias em desenvolvimento, tem causas que precedem a consolidação do fenômeno da globalização.

Essas causas se situam, por exemplo, nas baixas taxas de investimentos, em políticas lenientes com a inflação ou o déficit público, em baixos indicadores sociais, em despreparo da mão-de-obra, em falta de uma abordagem mais agressiva dos mercados nacional e internacional, em falta de políticas transparentes, mas eficientes, de prevenção e correção de práticas desleais de comércio e, é preciso dizê-lo, na resistência a fazer as reformas que efetivem a passagem dos modelos anteriores de desenvolvimento e produção para os modelos exigidos pelo mundo que a história está construindo para nós e as gerações futuras.

O Brasil serve de exemplo em vários desses itens e é com esse reconhecimento que quero finalizar minha intervenção. Nós temos tido um bom desempenho em nossa reinserção no mundo da globalização, e isso, em grande parte, graças aos muitos avanços que fizemos aqui dentro. Mas resta muito a fazer.

Tomemos o exemplo das reformas. Nós sabemos que precisamos de reformas profundas para consolidar a estabilização da economia e promover o crescimento, mas há resistências a essas reformas mesmo com a certeza de que elas serão necessariamente o produto de um amplo processo de entendimento democrático. Muitas dessas resistências são puramente ideológicas e desprovidas de sentido prático ou, pior, são puramente corporativas.

Tomemos o exemplo das práticas desleais de comércio. O mundo tem avançado muito em matéria de compromissos internacionais para liberalizar e facilitar o comércio de bens e serviços. A criação da Organização Mundial de Comércio e a integração regional são sem dúvida capítulos importantes da globalização, que mostram claramente que, ao contrário do que alguns afirmam, há enorme espaço para a atuação dos Estados ao lidarem com o fenômeno da globalização.

Mas nós temos de estar mais bem preparados internamente para lidar com casos tópicos de práticas desleais de comércio, e isso não apenas em termos de recursos humanos, mas também em termos institucionais e legais, dentro das margens de manobra que nos permitem nossos compromissos internacionais e regionais.

Por tudo isso, o debate que aqui se inicia ganha uma importância singular para nós.

Se é em parte verdade que a rigor a globalização começou com as caravelas de Vasco da Gama e Cristóvão Colombo, ela é um fenômeno relativamente recente no formato e abrangência com que o conhecemos hoje. Por isso ela exige dos formuladores e executores de políticas e dos analistas em geral, antes de tudo, consciência objetiva e crítica, espírito aberto e muito conhecimento das realidades nacional, regional e internacional. E isso para que possa ser enfrentada como aquilo que ela realmente é: um complexo conjunto de oportunidades, desafios e riscos, onde o que importa é a capacidade de dar respostas eficientes e ter ações e reações rápidas e apropriadas, em sintonia com as forças da história e não contra elas.

Muitas dessas respostas são ainda incompletas ou desconhecidas. Muitas já estão em prática, aqui ou em outros países e regiões. Muitas terão de ser corrigidas ou aperfeiçoadas. Muitas ainda surgirão do debate crítico, aberto e construtivo, de que é exemplo este encontro.

A contribuição que sair daqui será fecunda, estou certo, porque nós precisamos de idéias e instrumentos conceituais e analíticos para melhor ver e interpretar o mundo.

Por isso, eu lhes desejo muito êxito em suas apresentações e deliberações, e que este seminário seja um tributo merecido ao cinqüentenário da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo, a cuja iniciativa devemos esta oportunidade e à qual, como instituição de ensino, tanto devem São Paulo e o Brasil inteiro.

Muito obrigado.