Quero crer que, longe de estar obsoleta,
a questão do território tornou-se central. Como
se sabe, a forma última da soberania, num mundo competitivo,
é o monopólio, em mãos do Estado, da utilização
legítima da força e essa jurisdição
exclusiva se exerce num quadro territorial definido, ou seja,
dentro de fronteiras internacionalmente reconhecidas.
O território não é
uma noção abstrata mas uma realidade histórica
e juridicamente construída. O esforço de desvalorizá-lo
ataca o conceito de soberania. Se descaracterizado, o território
deixaria de ser uma construção política para
transformar-se num simples "espaço" para a atividade
política, econômica e cultural. As fronteiras se
tornariam supérfluas, e com elas a soberania e os conseqüentes
interesses nacionais iriam constituir obstáculos arcaicos
à evolução do sistema internacional.
Terra, território e espaço
são conceitos que não se confundem. Terra, como
fator da produção, engloba os recursos naturais
e o meio ambiente e seu valor se expressa em termos patrimoniais.
Já território, onde se radica uma sociedade organizada
como Estado, representa outros tipos de valor, usualmente não
mensuráveis em dólares ou reais. Espaço,
neste contexto, corresponde a uma noção degradada
de território.
Desenfatizar o território vale
por endossar os modelos hegemônicos de ordem internacional.
O gerenciamento do território, seu ordenamento, torna-se
um atributo crítico da organização do futuro
da sociedade nacional.
Nem de longe estariam os países
desenvolvidos dispostos a abandonar sua base territorial, a jurisdição
sobre seus respectivos territórios nacionais. Buscam apenas
modificar o uso que é feito da terra, como fator de produção.
Não cogitam limitar sua própria jurisdição
como se depreende dos controles aperfeiçoados que impõem
aos fluxos migratórios. Querem, porém, mudanças
na jurisdição sobre os territórios alheios;
fora das fronteiras do mundo desenvolvido, o território
se transformaria num espaço, no qual o fator de produção
terra se tornaria internacionalmente disponível.
Quem poderia ser contra o Estado e
a corporação "virtuais" como veículos
lançadores de um futuro melhor? Ou serão estas idéias
apenas - e paradoxalmente - mais um enfoque neoconservador de
entender o mundo? Será que voltamos ao tempo em que a "mudança"
se apresentava como um artifício para manter as coisas
tais como estão?
Afinal, uma das características
básicas da transição disparada pelo fim da
guerra fria é a sobrevivência de idéias antiquadas,
sob o disfarce da modernidade.
Estado "virtual", segundo
Rosencrance, é o que reduz a capacidade produtiva em seu
território, aquele cuja economia depende de fatores móveis
de produção. Trata ele obviamente de países
desenvolvidos, cujo aparato produtivo já se localiza crescentemente
fora de suas fronteiras. Nesta nova caracterização
reaparece, no universo ortodoxo de discussão, a perturbadora
divisão dos países em desenvolvidos e subdesenvolvidos.
As empresas do Estado virtual se especializam
em serviços sem os quais a produção é
inviável, até por não encontrar mercado,
ao passo que tendem a manter em suas sedes os segmentos industriais,
como o dos componentes eletrônicos, que agregam muito valor
ao produto final. Entre esses serviços estratégicos
estão pesquisa e desenvolvimento, consultoria, desenho
industrial, embalagem, financiamento e comercialização
de novos produtos. A partir das sedes se formam ainda as políticas
de fusões e aquisições, como nota Rosencrance.
No sentido próprio, a corporação
"virtual" é a que prefere não contar com
linha de montagem própria. É a que subcontrata linhas
de montagem de propriedade de outras empresas. Pode também
ser aquela que dispersa globalmente suas unidades produtivas de
acordo com o princípio das vantagens comparativas, já
havendo casos em que praticamente 100% das atividades fabris de
uma corporação estão localizados no exterior.
A "internacionalização
do sistema produtivo" se traduz na prática pela produção
no exterior - a custos mais baixos - para venda no mercado mundial.
Tornou-se possível por não mais subsistir a "ameaça"
comunista. "Ameaça" agora é apenas o que
dificulta a internacionalização.
A terceira idéia se desenvolve
a partir do tema da redução (downsizing), que seria
o futuro dos Estados "virtuais". Como já ocorria
há 20 ou mais anos, Hong Kong é vista não
como anomalia política, mas como modelo - agora porque
boa parte de sua estrutura industrial está localizada na
China meridional. Hong Kong - plataforma de exportação
por excelência - é sem dúvida a corporificação
contemporânea da anulação da soberania territorial
em prol da criação de um livre espaço econômico.
Dessa idéia, o articulista
deriva a divisão do mundo entre nações-cabeça
e nações-corpo. A Austrália e o Canadá
estão entre as primeiras, em função de seus
setores avançados de comunicações e media.
Já a China, a seu ver, será o modelo da nação
corpo do século XXI, que por ser dependente dos serviços
estratégicos não poderá organizar seu futuro
industrial; a Rússia, que ainda não se estruturou
legal e fisicamente como "nação-corpo"
manufatureira para suprir a "cabeça" estrangeira,
e a Índia pertencerão também ao segundo grupo,
o do parque fabril mundial.
Mais do que verberar a presunção
e o oportunismo dessas concepções - diante, por
exemplo, do avanço recente da economia chinesa - seria
útil resgatar o que elas possam ter de verdadeiro, a parcela
sem a qual a corporação assim como o Estado "virtual"
não passariam de emanações arbitrárias
da imaginação, sem correlação com
a realidade.
Importa reter da análise desses
pontos o seguinte: a política territorial deve estar na
primeira linha das preocupações, pois a globalização
estimula a concentração econômica, acentua
as contradições de interesse e alenta a divisão
dos países em unidades menores. O Estado, virtual ou não,
continua a ser um ator de primeira linha - é o principal
instrumento de que a sociedade democraticamente dispõe
para negociar seu futuro, sua inserção na ordem
global e regional.
Mesmo na economia, a globalização
não tem apenas repercussões "virtuosas".
Se, nos esforços em favor da competitividade externa, as
receitas homogeneizantes devem ser levadas em conta, é
fundamental que o sistema político as coloque na perspectiva
dos interesses e necessidades abrangentes do país. A insegurança
em seu amplo sentido social é função não
só de circunstâncias internas, mas também
de fatores importados.
Não somente por ser grande
- um "Estado-baleia" como definiu o professor Ignacy
Sachs - um país será relevante. A qualidade de sua
inserção internacional se definirá também
por fatores como a educação em todos os níveis,
a situação social, inclusive do ângulo da
distribuição de renda, e o desenvolvimento científico
e tecnológico. Esforços concentrados são
necessários para a capacitação na área
dos serviços estratégicos. Essas são variáveis
cruciais para a definição do futuro.