REALIDADE VIRTUAL E GLOBALIZAÇÃO


Ronaldo Mota Sardenberg *

Quem poderia ser contra o novo, contra o que promete uma vida melhor? Em brilhante, mas não inteiramente convincente, artigo na revista "Foreign Affairs", o professor Richard Rosencrance propõe a idéia de que a noção de território (nacional) está ultrapassada na medida que se afirmem o Estado e a corporação "virtuais" e em que o mundo passe a dividir-se em "países-cabeça" e em "países-corpo".

Quero crer que, longe de estar obsoleta, a questão do território tornou-se central. Como se sabe, a forma última da soberania, num mundo competitivo, é o monopólio, em mãos do Estado, da utilização legítima da força e essa jurisdição exclusiva se exerce num quadro territorial definido, ou seja, dentro de fronteiras internacionalmente reconhecidas.

O território não é uma noção abstrata mas uma realidade histórica e juridicamente construída. O esforço de desvalorizá-lo ataca o conceito de soberania. Se descaracterizado, o território deixaria de ser uma construção política para transformar-se num simples "espaço" para a atividade política, econômica e cultural. As fronteiras se tornariam supérfluas, e com elas a soberania e os conseqüentes interesses nacionais iriam constituir obstáculos arcaicos à evolução do sistema internacional.

Terra, território e espaço são conceitos que não se confundem. Terra, como fator da produção, engloba os recursos naturais e o meio ambiente e seu valor se expressa em termos patrimoniais. Já território, onde se radica uma sociedade organizada como Estado, representa outros tipos de valor, usualmente não mensuráveis em dólares ou reais. Espaço, neste contexto, corresponde a uma noção degradada de território.

Desenfatizar o território vale por endossar os modelos hegemônicos de ordem internacional. O gerenciamento do território, seu ordenamento, torna-se um atributo crítico da organização do futuro da sociedade nacional.

Nem de longe estariam os países desenvolvidos dispostos a abandonar sua base territorial, a jurisdição sobre seus respectivos territórios nacionais. Buscam apenas modificar o uso que é feito da terra, como fator de produção. Não cogitam limitar sua própria jurisdição como se depreende dos controles aperfeiçoados que impõem aos fluxos migratórios. Querem, porém, mudanças na jurisdição sobre os territórios alheios; fora das fronteiras do mundo desenvolvido, o território se transformaria num espaço, no qual o fator de produção terra se tornaria internacionalmente disponível.

Quem poderia ser contra o Estado e a corporação "virtuais" como veículos lançadores de um futuro melhor? Ou serão estas idéias apenas - e paradoxalmente - mais um enfoque neoconservador de entender o mundo? Será que voltamos ao tempo em que a "mudança" se apresentava como um artifício para manter as coisas tais como estão?

Afinal, uma das características básicas da transição disparada pelo fim da guerra fria é a sobrevivência de idéias antiquadas, sob o disfarce da modernidade.

Estado "virtual", segundo Rosencrance, é o que reduz a capacidade produtiva em seu território, aquele cuja economia depende de fatores móveis de produção. Trata ele obviamente de países desenvolvidos, cujo aparato produtivo já se localiza crescentemente fora de suas fronteiras. Nesta nova caracterização reaparece, no universo ortodoxo de discussão, a perturbadora divisão dos países em desenvolvidos e subdesenvolvidos.

As empresas do Estado virtual se especializam em serviços sem os quais a produção é inviável, até por não encontrar mercado, ao passo que tendem a manter em suas sedes os segmentos industriais, como o dos componentes eletrônicos, que agregam muito valor ao produto final. Entre esses serviços estratégicos estão pesquisa e desenvolvimento, consultoria, desenho industrial, embalagem, financiamento e comercialização de novos produtos. A partir das sedes se formam ainda as políticas de fusões e aquisições, como nota Rosencrance.

No sentido próprio, a corporação "virtual" é a que prefere não contar com linha de montagem própria. É a que subcontrata linhas de montagem de propriedade de outras empresas. Pode também ser aquela que dispersa globalmente suas unidades produtivas de acordo com o princípio das vantagens comparativas, já havendo casos em que praticamente 100% das atividades fabris de uma corporação estão localizados no exterior.

A "internacionalização do sistema produtivo" se traduz na prática pela produção no exterior - a custos mais baixos - para venda no mercado mundial. Tornou-se possível por não mais subsistir a "ameaça" comunista. "Ameaça" agora é apenas o que dificulta a internacionalização.

A terceira idéia se desenvolve a partir do tema da redução (downsizing), que seria o futuro dos Estados "virtuais". Como já ocorria há 20 ou mais anos, Hong Kong é vista não como anomalia política, mas como modelo - agora porque boa parte de sua estrutura industrial está localizada na China meridional. Hong Kong - plataforma de exportação por excelência - é sem dúvida a corporificação contemporânea da anulação da soberania territorial em prol da criação de um livre espaço econômico.

Dessa idéia, o articulista deriva a divisão do mundo entre nações-cabeça e nações-corpo. A Austrália e o Canadá estão entre as primeiras, em função de seus setores avançados de comunicações e media. Já a China, a seu ver, será o modelo da nação corpo do século XXI, que por ser dependente dos serviços estratégicos não poderá organizar seu futuro industrial; a Rússia, que ainda não se estruturou legal e fisicamente como "nação-corpo" manufatureira para suprir a "cabeça" estrangeira, e a Índia pertencerão também ao segundo grupo, o do parque fabril mundial.

Mais do que verberar a presunção e o oportunismo dessas concepções - diante, por exemplo, do avanço recente da economia chinesa - seria útil resgatar o que elas possam ter de verdadeiro, a parcela sem a qual a corporação assim como o Estado "virtual" não passariam de emanações arbitrárias da imaginação, sem correlação com a realidade.

Importa reter da análise desses pontos o seguinte: a política territorial deve estar na primeira linha das preocupações, pois a globalização estimula a concentração econômica, acentua as contradições de interesse e alenta a divisão dos países em unidades menores. O Estado, virtual ou não, continua a ser um ator de primeira linha - é o principal instrumento de que a sociedade democraticamente dispõe para negociar seu futuro, sua inserção na ordem global e regional.

Mesmo na economia, a globalização não tem apenas repercussões "virtuosas". Se, nos esforços em favor da competitividade externa, as receitas homogeneizantes devem ser levadas em conta, é fundamental que o sistema político as coloque na perspectiva dos interesses e necessidades abrangentes do país. A insegurança em seu amplo sentido social é função não só de circunstâncias internas, mas também de fatores importados.

Não somente por ser grande - um "Estado-baleia" como definiu o professor Ignacy Sachs - um país será relevante. A qualidade de sua inserção internacional se definirá também por fatores como a educação em todos os níveis, a situação social, inclusive do ângulo da distribuição de renda, e o desenvolvimento científico e tecnológico. Esforços concentrados são necessários para a capacitação na área dos serviços estratégicos. Essas são variáveis cruciais para a definição do futuro.


*Embaixador e Secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência da República.
Publicado no Jornal "O Globo", de 09.09.96
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