Os "inempregáveis" de FHC: globalização e emprego no Plano Real
 
Adolfo Furtado

O IBOPE divulgou, recentemente,  os resultados de uma pesquisa de opinião sobre o estado de espírito dos brasileiros em relação ao Plano Real e ao futuro do país. Com pequenas diferenças, esse último levantamento só veio confirmar um aparente paradoxo que duas outras pesquisas encomendadas pela CNI ao mesmo instituto, em agosto e novembro de 1996, já haviam apontado: a maioria esmagadora dos brasileiros considera que sua vida melhorou substancialmente após o Plano Real mas, ao mesmo tempo, encara o desemprego como a maior ameaça que enfrenta e o obstáculo mais importante para a continuidade do programa de estabilização econômica. O medo do desemprego é tão grande que, segundo a pesquisa de novembro de 1996, 68% dos entrevistados preferiam que a CLT fosse modificada, a fim de que empregadores e empregados pudessem negociar reduções temporárias dos direitos trabalhistas, como forma de evitar demissões.

Se as pesquisas mencionadas efetivamente refletem o estado de espírito da sociedade brasileira em relação à questão do emprego, seria razoável pensar que, a par da manutenção da estabilidade econômica, o desemprego passasse a ser uma das maiores preocupações do governo de um Presidente que busca a reeleição. Essa, no entanto, não é a percepção das pessoas pesquisadas. Embora a maioria delas considere que o combate ao desemprego deva ser a prioridade número um do governo, acima inclusive da saúde e da educação, sua avaliação é de que esse é um assunto que não ocupa posição privilegiada na agenda política das autoridades federais.

É possível que essa sensação generalizada de que o governo não se preocupa com o desemprego seja gerada por dois argumentos exaustivamente repetidos pelo próprio Presidente da República.

O primeiro é de natureza estatística: as taxas de desemprego aberto calculadas pelo IBGE para um conjunto de seis regiões metropolitanas têm se situado, em média, abaixo de 5,5%, comparáveis, portanto, ao nível de desemprego dos EUA, considerados como um país bem sucedido em termos de geração de empregos (ver Gráfico 1).

O segundo argumento é o de que o desemprego atual é, de certo modo, inevitável, pois seria o efeito colateral da chamada globalização da economia. Em um seminário internacional sobre política de emprego e flexibilização das relações trabalhistas,  ocorrido em abril de 1997, o Presidente FHC, no melhor estilo Magri, resumiu esse ponto de vista:
"Não adianta ficar de braços cruzados lamentando um processo real. (...) Ora, se isso é assim, nós nos países em desenvolvimento temos que prestar atenção a esses processos [de globalização econômica] e descobrir meios pelos quais se diminui, ao menos, esse processo [de desemprego]. (...) E não é fácil. Mas existe isso, existem os que são, crescentemente, inempregáveis (sic). Não é que não tenham emprego, inempregáveis por razões, por um lado, pela falta de qualificação e, pelo outro lado, pelo desinteresse do setor produtivo mais avançado em empregá-las. São dispensáveis."

Mas, afinal, existe alguma impropriedade no discurso de FHC, além das perpetradas contra a língua pátria?

Analisemos com mais cuidado, inicialmente, a questão estatística. Mesmo sem recorrer à controvérsia existente quanto à melhor forma para se mensurar o fenômeno do desemprego no Brasil , convém analisar os dados do IBGE dentro de uma perspectiva histórica um pouco mais abrangente. Como se pode ver pelo Gráfico 2, que apresenta as taxas médias anuais de desemprego aberto para a década de noventa, o desemprego em 1996 atinge proporções comparáveis, grosso modo, às do período 90-92, quando, por força da recessão imposta pelo Plano Collor, o Produto Interno Bruto diminuiu significativamente.

Ora, a economia brasileira apresentou sempre taxas de crescimento anuais positivas durante o Plano Real, em que pese o freio que lhe foi imposto pelas autoridades econômicas entre o segundo trimestre de 1995 e o primeiro trimestre de 1996, responsável pela elevação do desemprego nesse período. Desse modo, seria de se esperar que o desemprego aberto fosse bem inferior no Plano Real do que na recessão do início da década. Por que, então, as taxas de desemprego são similares nos dois períodos?

A explicação relacionada a mudanças estruturais no mercado de trabalho, que constitui o segundo argumento do Presidente, soa razoável. É conveniente, portanto, elaborar um pouco mais a noção de desemprego estrutural, causado pela globalização, que vai um pouco além do descompasso entre a demanda e a oferta de força de trabalho, causada por distorções no nível de qualificação da mão-de-obra.

O processo de ajuste estrutural à globalização econômica atua em várias frentes. Trata-se, no caso dos países latino-americanos, de substituir um modelo de desenvolvimento baseado na substituição de importações – ou seja, em um projeto nacional voltado para a construção de uma economia setorialmente integrada – pelo de "inserção competitiva na economia mundial", em que se exploram as vantagens comparativas do país em recursos naturais, tecnologia e força de trabalho, de modo a que o setor exportador passe a ser o seu pólo dinâmico.
Esse processo de ajuste, dentro do receituário de organismos multilaterais de crédito, deve envolver os seguintes pontos:

É fácil verificar que, apesar de alguns insucessos – um ajuste fiscal ainda tímido e a evidente falha em investir na área social -, o governo vem procurando aplicar medidas muito similares às descritas acima. Do ponto de vista do mercado de trabalho, os resultados a longo prazo são vendidos como animadores: elevação do nível de emprego, crescimento dos  salários reais e crescente incorporação de força de trabalho informal no setor empresarial moderno da economia.

No entanto, os arautos da globalização advertem que o ajuste, no curto prazo, nunca será indolor. A exposição de segmentos industriais ineficientes à competição externa pode destruir empregos formais , assim como os processos de privatização e de ajuste fiscal. Neste sentido, e como um célebre economista inglês já advertiu para o fato de que, "a longo prazo, todos estaremos mortos", convém analisar brevemente a evolução recente do emprego.

O Gráfico 3 dá uma boa idéia do que ocorreu com o setor formal do mercado de trabalho, no período compreendido entre julho de 1994 e dezembro de 1996.


Em dois anos e meio, ao longo do Plano Real, foram destruídos 755 mil postos de trabalho com carteira assinada, dos quais 56% no setor industrial. É verdade que o encolhimento do segmento formal vem ocorrendo desde o início da década , de modo que não se pode atribuir exclusivamente ao Plano Real as mazelas do mercado de trabalho brasileiro.

No caso da indústria da transformação, porém, é certo que os efeitos diretos e indiretos da abertura comercial são responsáveis pela maior parte das ocupações perdidas ao longo desse período. De um lado, empregos foram diretamente destruídos porque parte da produção brasileira foi substituída por bens importados. Mas esse não foi o efeito mais importante: a maioria das demissões foi causada por mudanças substanciais nas formas de organização da produção e do processo de trabalho – terceirização, outsourcing, automação, etc. – que elevaram enormemente a produtividade do trabalho, tornando trabalhadores dispensáveis.

Embora mais visíveis na indústria, essas novas práticas empresariais se espalharam por outros setores, a exemplo dos serviços. As instituições financeiras, por exemplo, foram responsáveis por um grande número de postos de trabalho destruídos no período analisado. Embora parcela relevante do enxugamento do emprego nesse ramo tenha se devido ao avanço da automação bancária e ao ajuste realizado em função da redução dos níveis de inflação, não se pode desconsiderar atitudes como a do Presidente do Bradesco, que promoveu cerca de 11 mil demissões nos últimos três anos, alegando que nos Estados Unidos, basta que uma empresa anuncie um programa de demissões para que suas ações subam na bolsa .

Paralelamente, as ocupações geradas no segmento informal do mercado de trabalho – aquele formado por assalariados sem carteira assinada e trabalhadores por conta própria – têm crescido sistematicamente, não só em termos absolutos como também como proporção do mercado de trabalho total. Desde o início da década de noventa, cerca de 9 milhões de pessoas economicamente ativas encontraram alguma forma de ocupação no mercado informal. Esta é a principal razão pela qual as taxas de desemprego aberto permanecem relativamente baixas no Brasil.

Na década passada, poder-se-ia afirmar, com razoável certeza, que o crescimento do segmento informal do mercado de trabalho significava que o país estava trocando empregos com maior qualidade e melhor remunerados por ocupações de baixa produtividade e remuneração. Atualmente, embora esse fato seja, grosso modo, verdadeiro, é preciso ter em mente que o segmento informal está, de alguma forma, mudando, como atesta o crescimento real dos rendimentos reais dos ocupados sem carteira assinada e dos trabalhadores por conta própria que, no Plano Real, tem sido em média superior ao crescimento dos salários no segmento formal. Como resultado, em 1996 as rendas reais médias dos ocupados sem carteira e dos conta-própria eram, respectivamente, 26% e 13% inferiores à dos trabalhadores do setor formal.

Aparentemente, portanto, o processo de ajuste do mercado de trabalho brasileiro está se processando dentro dos figurinos pré-estabelecidos: o segmento formal teve sua importância reduzida, em grande parte por conta da diminuição no nível de emprego industrial causada direta ou indiretamente pela abertura da economia, e a maioria dos ocupados já se encontra trabalhando no segmento informal, em condições de máxima flexibilidade. Resta saber se o futuro do trabalhador brasileiro, no longo prazo, será tão auspicioso quanto as previsões dos teóricos da globalização.